terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

REENCARNAÇÃO

  



      Ao sair de casa para comprar alimentos e também algumas futilidades (não consigo viver sem as futilidades do dia a dia), vi algo que me perturbou... Me deixou sem voz, sem reação. Um cão estava ali, na minha frente, estendido, ferido, morto.

     Não pude seguir adiante, parei, observei seu estado e ali permaneci nem sei por quanto tempo... Talvez minutos, horas. Não sei...

     Ao olhar o cão, tão magro, tão desprezível por todos que ali passavam, não tive nojo, não tive receio de me aproximar dele. Algo me chamava... Percebi no cachorro características humanas já não mais reconhecidas porque nos perdemos procurando ser o que é sempre mais conveniente para os outros. E eu? EU? Eu? Deixei... Deixei que me levassem, sem ao menos reclamar, sem nem mesmo me importar com rumo que as coisas tomariam, porque eu existia e alguém sempre me diria tudo o que deveria fazer, me mostraria o caminho certo a seguir.

     Agachei-me, toquei no material inerte, mas não adiantava falar nada... Fazer nada... Ninguém ouviria... Ninguém entenderia o amor que eu sentia pelo bicho quase em decomposição... .

     Sem querer, transportei-me para o passado que há anos eu recusara, que eu negava a existência como se tivesse vivido por outra pessoa. No entanto, naquele momento eu não podia fugir... O cão me forçava a recordar... E eu me permiti... Pela primeira vez eu me permitia algo...

     Eu, eu, e as marcas em mim que jamais se apagarão. Revivi cada instante dolorido, com o prazer de um sádico. Eu acabara de descobrir que era um acaso na vida e que insistia em viver. Eu fora a vergonha escondida por longos anos, o fruto do erro, a rejeitada no ventre, a infeliz desde o início sem saber o motivo. Eu que sempre buscara um sentido mas não achava. Eu que sempre questionei: Onde me encontrar? Onde começar a me tornar um SER, uma PESSOA. Como saber quem sou eu, se não sei o que é ser eu?

     O cão estava com olhos abertos e pareciam me fitar... Me dizia que vale a pena viver, embora ele já não possa. Seus olhos ultrapassavam minha mente, meu corpo; enfim, causavam-me um certo desconforto...

     Foi então que reparei em seus dentes: tão brancos, tão perfeitos, entreabertos... Nada neste mundo poderia ser tão perfeito como os dentes daquele cão, que pareciam sorrir para mim.

     Ele estava morto, tão morto como eu quisera tantas vezes e como em certos momentos ainda desejo. Eu e o cão estávamos ali, ambos mortos, ele com o corpo mortificado, eu com minha alma inquieta, com uma ferida que não sara, sangra e dói...

     Num ímpeto, tive vontade de pegá-lo, de abraçá-lo e de dar a ele o carinho que certamente não teve. Não tive coragem... O que pensariam as pessoas, que já me olhavam assustadas com minha atitude? Sempre elas... Sempre o comedido, o equilíbrio acima de tudo, o aceitável, a aparência...

     Vi o animal atentamente mais uma vez. Amanhã não estaria mais ali, certamente deveria ser levado e jogado em algum buraco distante, sem que eu soubesse onde. Ao olhá-lo pela última vez, nossos olhos se encontraram, lágrimas rolaram em meu rosto e eu enfim compreendi: o cão era eu.
Tania Barros




















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