terça-feira, 3 de maio de 2022

REDENÇÃO

          Uma chuva torrencial caía e ela estava sozinha naquela cidade estranha e imensa. Não tinha ninguém. Estava só, como sempre fora. Era apenas uma menina ruiva e perdida. Perdida na cidade, perdida dentro de si mesma. Sem rumo aparente. Não conhecia família, não conseguia imaginar um amigo que um dia a ouvira. Até seu cão a abandonara. Dormia ao relento e às vezes não comia nada. Em seu rosto um ar de melancolia, insatisfação e dor pareciam querer transbordar de dentro dela mesma. Porém, aprendera desde cedo a conter-se, a esconder sua tristeza e a calar sempre.

          Seu corpo era extremamente magro e branco, muito branco...Sua fragilidade era tão intensa que aos poucos podíamos imaginar o seu desaparecimento. Era como se de repente pudesse ir se desmaterializando, se despedaçando, sumindo devagar... Bem devagar.... Até se tornar um espectro... Talvez fosse exatamente isso que ela era. Um espectro.

          No entanto, tinha olhos azuis. Lindos olhos azuis! Tão tristes e sem esperança, marejados de lágrimas naquele instante. Caminhava a esmo sem saber para onde. Não sabia onde estava e desconhecia tudo ao seu redor. Como fora chegar até ali? Não sabia. Seria uma cidade habitada? E ela? Existia mesmo? Tudo era real demais para ser ilusão... De novo não... Era real, ela sentia!

          O que pôde observar é que ali morava algo que sempre temera, mas que agora não havia jeito de voltar. Não poderia retroceder... O medo a dominava, mas não era o medo dos homens ou dos perigos ocultos. Isso evitava ou encarara sem grandes dificuldades. Seu maior medo era o de si mesma. Um simples olhar no espelho a apavorava porque não conseguia enxergar-se. Onde estava mesmo? Melhor seria então, não olhar-se nem em espelhos ou em qualquer outro lugar que refletisse o pouco que ela poderia ser.

          Caminhou vagarosamente até um beco escuro. A escuridão sempre a intrigara, pois exercia sobre ela um fascínio e temor inexplicável. Olhou ao redor e deitou-se. O chão frio e fétido já fazia parte do seu cotidiano. Ali, tentou dormir, mas seus olhos concentravam-se nas estrelas, que pareciam brilhar muito mais naquele momento. Fechava os olhos mas o sono não vinha. Em sua mente, os planos para uma nova existência começavam a tomar conta de sua imaginação. Teria o direito de sonhar? Poderia sequer imaginar uma vida ali? Seus pequenos sonhos poderiam ser concretizados? Ela também merecia. Merecia? Não sabia... Adormeceu, enfim...

          No outro dia, o sol apareceu cedo demais, iluminava tudo ao seu redor e então, a menina percebeu que era um novo dia que começara. Para ela, as mudanças iniciariam imediatamente. As mudanças sempre eram rápidas e fulminantes!

          Olhou para si, arrumou a roupa suja e amassada e foi procurar algo para comer nas lixeiras, acostumara-se ao lixo. Já não se tornara ela mesma um lixo humano? Aos poucos, pessoas caminhavam avidamente pelas ruas. Olhava-as em busca de um milagre. Ela acreditava ainda em milagres! Porém, nem sequer notavam sua presença, sua insignificância. O carinho que tantas vezes buscou novamente lhe era negado. Não teria ali também um lugar para ficar, muito menos um lar. Como pôde acreditar que algo poderia mudar? Só desejava um espaço só seu... onde não incomodasse ninguém, pois vivia só de pensamentos e ilusões. A ilusão sempre a salvara....

           Continuou a procurar algo que pudesse comer e não encontrou nada. O nada sempre fora a maior explicação de si mesma. Parecia que o tempo havia parado.... E ela já não existia mais. Os transeuntes passavam e não a viam ou fingiam não vê-la. Já estava acostumada a não ser notada, mas naquele instante, uma coragem avassaladora tomou conta de si mesma e ela gritou, gritou como quem está perdendo uma parte do seu corpo, como se algo a dividisse ao meio: “Eu existo, estou aqui, me olhem....”. “Eu sou alguém!”

          Que idiotice acreditar que ouviriam uma garota mal vestida, suja e descabelada gritando no meio da rua! Nada aconteceu... Só o silêncio....Seu companheiro fiel.

          Olhou para os lados e pensou que era cedo demais para desistir. Afinal estava ali e era preciso dar continuidade ao mistério.... Ainda não perdera a fé. A dita fé que remove montanhas!!!! Ora, nem sequer sua fé foi capaz de torná-la alguém... de ser? Continuou a caminhar sem saber para onde. Já não pensava com exatidão...Procurava o que mesmo? Insistia em buscar algo que já havia perdido há muito tempo e que jamais seria restituído. Em seu íntimo algo lhe dizia que em breve encontraria seu caminho.

         O tempo passava e ela permanecia no mesmo lugar, estática, desorientada, estranha, fora de si... Nada havia mudado, absolutamente nada. Estava do mesmo jeito que ali chegara? Não... mudanças ocorriam dentro dela e isso ninguém poderia arrancar-lhe ou tirar-lhe. Isso lhe pertencia.

          A chuva recomeçara com mais força e cada vez mais os pingos molhavam seu pequeno corpo, machucavam seu rosto... mas ela não se importava... ficou ali, paralisada, recebendo as gotas gélidas, que pareciam bênçãos do céu....

        Foi então que algo aconteceu... avistou ao longe uma imensa catedral, tão exuberante... tão perfeita, como ela jamais seria. Suas portas estavam abertas como se estivesse esperando por uma visita que logo chegaria. Algo a impeliu até lá. Meio amedrontada com a beleza do lugar e sua simplicidade, não tocava em nada, somente seus olhos observavam tudo. Avistou cortinas do tecido mais fino, chegou a sentar-se no banco mais confortável que já tivera a oportunidade de fazê-lo, viu também um piano. Como gostaria de saber tocar!!!! A música sempre conseguira aliviar a angústia de sua alma. Pelo menos por alguns instantes.

          Em vários lugares via esculturas de madeira e de outros materiais que não saberia denominar. Várias imagens lhe chamaram a atenção, até que... até que sentiu como se naquele momento seu coração parasse. Bem ali, na sua frente havia a imagem de um homem simples, magro e pregado numa cruz. Quem era ele? Imaginou que seria o tal cristo que veio ao mundo para dar esperança às pessoas. Não era isso que a tal religião tanto pregava? Cadê então a sua esperança?

        Aproximou-se devagar, e sem entender os motivos, sentiu-se finalmente compreendida e reconfortada. Ajoelhou-se abruptamente e sem perceber as lágrimas vieram aos borbotões, mais as mais verdadeiras de sua triste vida.

          Todos os seus pedidos foram ali depositados. Uma calma sobreveio sem nenhuma explicação. Ainda permaneceu ali e chorou... Não era o choro de desespero, de dor contida. Era choro de morte. De uma morta-viva! Levantou-se em seguida e foi embora. Não continha mais suas lágrimas.... mas rosto já se acostumara a elas...

          A chuva não cessava e seu coração começou a bater acelerado. Uma angústia tomou conta do seu ser e uma idéia súbita e sombria lhe passou pela mente. Será? Avistou ao longe um mirante. Sentia-se compelida a ir até lá, como se algo a chamasse. Foi...

          Ninguém a olhava, sequer percebiam a sua existência... Foi subindo os degraus bem devagar, como se tivesse que cumprir um ritual.... Sua cabeça doía, como se algo a estivesse esmagando. Náuseas tomavam conta dela e as vertigens pareciam aumentar a cada passo que dava. Não poderia voltar mais. Era importante ir até o fim.

          Chegou finalmente no topo, o lugar mais alto que já estivera na vida. De lá pôde ver a cidade inteira. Fixava seu olhar em vários pontos por alguns minutos e divagava...Tudo era intenso dentro dela. Sofria de excesso sempre lhe disseram, mas o excesso era tudo o que tinha de melhor em si mesma.

A noite chegara e a chuva não cessava. Seus olhos brilhavam ao ver a cidade iluminada. Aquela imensidão de luz a atraía cada vez mais...Queria fazer parte dela! A chuva aumentava, molhava seu rosto, seu corpo rodopiava de felicidade. Ela nem sabia o que era felicidade. Só sentiu que era bom estar no alto e enxergar de lá toda a cidade brilhando, reluzente, única. Enfim sua... Sua cidade! Agora descobrira também o que era alegria. Ria... ria... e seu sorriso pela primeira vez era verdadeiro.

          Depois da euforia inicial, aproximou-se das grades que a protegiam, olhou para baixo, depois para o céu escuro... foi um olhar lento e demorado..... Seu corpo virou-se, mas já não queria enxergar mais nada... nem cidade... nem luzes brilhando.... Seus lábios ainda sorriam, como se estivesse agora completa. Tocou levemente nas grades, segurou-as com firmeza e resolução. Eram baixas e nelas se encostou para receber a chuva que não parava nunca... As grades já não a protegiam mais de perigo algum, nem dela mesma... O medo dissipara-se por completo. Aos poucos, tudo fora se tornando insignificante diante de sua mais importante decisão.
          Olhou para o céu uma última vez e já não viu estrelas... Em um instante precipitou-se no ar de braços abertos. Poucos momentos de felicidade tivera, mas enfim descobrira o seu destino...

Tania Barros

Mário


Há dias eu não levantava da cama. Ali, naquele quarto eu apenas pensava, pois nem mexer meu corpo eu podia. Havia necroses por todo lugar... O tempo só me causara feridas que não cicatrizavam... E eu sabia que mais nada poderia ser feito embora recebesse a todo momento aquelas "doces" mensagens de consolação que mais me irritavam que alegravam. O que pensavam? Que eu não enxergava meu próprio corpo se desintegrando aos poucos? Como manter a esperança quando o seu cheiro é insuportável até para você mesmo? Já não ouso olhar-me no espelho... Me ver é como enxergar um fantasma repugnante...
Como eu chegara até aqui? Por que ainda estava vivo? Por quê? Sentia a  cada dia que as pessoas se aproximavam menos de mim, outras nem entravam mais no aposento. Eu, porém, não permitia que as janelas fossem abertas. Elas deviam permanecer fechadas. Hermeticamente fechadas... Eu queria sentir a minha própria morte. Queria ver a decomposição lenta do meu próprio ser. Não sabia exatamente os motivos, mas eu deveria passar por isso como um calvário. Eu não deveria questionar... Simplesmente aceitar.
Não permiti mais que me alimentassem, queria acelerar o processo. As pessoas me olhavam assustadas, mas com um agradecimento no olhar. Aquele quarto pertencia somente a mim. O cheiro fétido estava impregnado em tudo, principalmente nos lençóis que recebiam as excreções de minha pele quase podre. Eram lavados diariamente, mas logo resolvi que não deveriam ser mais tirados dali... Tudo deveria acabar logo e eu deveria sofrer profundamente a dor que em aguardava. Essa dor era só minha ... E necessária.
Minhas refeições eram colocadas em cima da mesa todos os dias e ali ficavam. Eu não sentia mais o sabor. Há o sabor! Nem o sabor da vida eu soubera aproveitar, se é que existe como pregam as pessoas felizes... Eu sempre preferira o lado oposto da alegria... Eu escolhera a solidão como companheira e não me arrependia... Nem na hora da minha morte eu iria me arrepender!
Todos os meus amigos desapareceram. Não senti falta, pois seus olhos piedosos me deixavam muito aflito e ansioso. Sozinho eu sentia minhas carnes se soltando do corpo e a morte não chegava. Como ansiava a sua presença! Como a desejava! Os lençóis já estavam insuportáveis e terrivelmente sujos, assim como eu me sentia. Os remédios acalmavam um pouco a minha dor, apenas a dor física. A pior era que eu sentira sempre dentro de mim e pra essa eu sabia que não existiam remédios.
          Cansado de esperar e num ato de desespero, tirei minhas ataduras e encarei minhas feridas de frente. Vi o sangue jorrar, as inflamações amareladas finalmente saíam de dentro da minha carne e senti o cheiro extremamente desagradável de mim mesmo... De um morto vivo. Sem querer comecei a esbravejar e chamar pela morte: venha logo, não suporto mais. O que mais quer de mim?
           Um vulto apareceu e eu o reconheci logo no início. Aproximou-se da cama, mas não me tocou. Olhou-me com pena e lágrimas nos olhos. Exclamei: - Vá embora, não quero você aqui. Veio assistir minha desgraça? Ela é só minha e eu desejo ficar só. Saia, Mário.
No entanto, ele ali permaneceu. Seu olhar terno me incomodava. Nem uma palavra saiu da sua boca, mas a sua presença me deixava agitado. Toda aquela perfeição me fazia ver no que eu havia me transformado e eu não queria mais ver nada... O que vira já me bastava. Tentava me mexer, mas não comandava mais aqueles pedaços de corpo que insistiam em manter-se unidos...
Meus olhos foram se fechando e eu senti então uma mão tocando levemente as minhas. Senti paz naquele momento. Foi o único instante de paz na minha vida inteira. Não vi se Mário estava ali ou se tinha ido embora. Talvez quisesse presenciar a última gota de agonia de um moribundo ou tivesse, de verdade, pena de mim. Eu não acreditava muito na segundo hipótese, mas parecia ser a mais conveniente. Meus pensamentos foram parando devagar e senti meu corpo amortecendo...
Finalmente... Ela chegara. Fechei meus olhos e agradeci.
Estava na hora de receber a alimentação do dia. Embora o doente não se alimentasse, a velha tia Antônia nunca deixara de colocar suas refeições sobre a mesa. Nesse dia, não esperava ver o que viu. Assustou-se ao olhar o rosto: não havia mais feridas, estavam cicatrizadas. O corpo... Esse não mudara... era apenas ossos que seguravam um cadáver. Levemente tapou o corpo com o cobertor e foi dar a notícia aos demais. Entrou na sala lacrimejando... Falou mansamente:
- Mário acabou de morrer. Finalmente vai descansar em paz!



Escrevo sem saber o que dizer. E por não saber o que dizer, escrevo. Liberto-me nas palavras, pois é a única liberdade que conheço. Lá fora chovia torrencialmente e o frio estava insuportável. Eu não podia mais faltar ao trabalho, mesmo que essa fosse a minha maior vontade. Lentamente levantei, me arrumei, peguei meus materiais, o guarda-chuva e saí. Era preciso dar continuidade à vida. Era preciso coragem e eu covardemente fui. Enquanto caminhava, deixava que alguns pingos de chuva caíssem em mim e me lembrassem que eu ainda estava viva. Meus passos não eram firmes há muito tempo, eles vacilavam a cada instante como se me levassem para uma prisão. A vida não poderia ser o acordar, levantar, trabalhar e voltar para casa... Não poderia ser uma sucessão de acontecimentos diários que quase não tinham  significado... A vida não podia ser o aguardar a semana e a ânsia pelo sábado e domingo. Talvez fôssemos todos Sisífos e essa era nossa grande tragédia. Há sempre  as perguntas sem respostas e as dúvidas que só aumentam. Há sempre o perigo de não poder mais voltar. Há sempre o medo de descobrir que a grande pergunta só pode ser respondida por você. Há sempre o temor de já se saber a resposta e adiá-la por uma vida inteira. Os relógios pareciam ter parado porque cada minuto parecia um dia perdido.



A CHEGADA

sábado, 25 de agosto de 2012

Persona


Ela passara o dia com febre e dor de cabeça. Ficou no quarto com as janelas trancadas sem que um raio de luz penetrasse naquele ambiente. Tudo estava sombrio e triste. Dentro de si só aquela sensação de impotência diante da vida. Só enxergava impossibilidades. Aproveitara o tempo para ler, mas os pensamentos fugitivos teimavam em surgiu e os parágrafos eram lidos e relidos sem nenhuma compreensão. Tentou ver um filme, mas nada a agradava. Mexendo no armário, encontrou uma cópia antiga de “Persona” e lembrou que ainda não tinha visto esse famoso filme de Bergman. Toda a casa ficou na escuridão, agora. A televisão foi ligada e o único som era do inebriante drama. Logo entendera a atriz que se cala, logo se identificou com a capacidade de calar quando todos gritam, logo compreendeu que ela também era uma personagem. Enquanto o filme rodava, seus olhos permaneciam fixos na tela e não conseguia ao menos fazer um movimento. Tudo aquilo era tão, tão... Tão seu. Era melhor calar que fingir? Encontraria uma Alma que pudesse salvá-la? Só conseguia fixar-se ora em uma personagem ora em outra, até as duas se confundirem numa mesma personalidade. Ela já sabia que dentro de si habitavam mais de um ser. Seria esse o eterno tormento do homem? Quem sou eu? Em qual momento estou sendo eu? Tantas vezes fizera essas mesmas perguntas. Tantas vezes chegara à mesma conclusão. Essa era a grande pergunta sem resposta. O filme acabara e ela continuava ansiosa. Pelo que tanto ansiava? Que desejo era esse que não se nominava? Levantou-se da cama, trocou rapidamente de roupa, lavou o rosto. Olhou-se demoradamente no espelho... Quem era esse ser que relutava tanto em existir? Quem era ela, afinal? Queria poder conter os pensamentos e fugir. Fugir pra onde? De que estava ela fugindo? Sempre fugindo... Colocou um sapato e saiu. Ao colocar os pés para fora da casa era como se o mundo se abrisse todo para engoli-la ferozmente. A angústia continuava e seus passos começaram a ser mais e mais rápidos. Sem rumo, quase corria. Evitava pensar. Era preciso não pensar e ir. Somente ir. Já estava muito longe de casa, os prédios foram ficando para a trás. Ela tinha se afastado de quase tudo. Chagava agora num lugar inóspito e sentia medo. Não poderia ter se perdido. Pedida. Sempre fora uma perdida, concluiu. Olhava para os lados e não via ninguém. De novo, sozinha. Solitária como sempre fora. O sol começava a arder e sua cabeça latejava. Procurou um local para sentar-se e não encontrou nada que a agradasse. Sentou-se ali mesmo e sentiu que a terra estava quente. Procurou afastar alguns pedaços de madeira e lixo que estavam jogados e sem querer sua mão tocou em algo inesperado. Olhou. Era uma pequena plantinha que surgia. Em meio à sujeira, um ser estava nascendo. Folhas pequeninas e verdes comaçavam a brotar. Ela aproximou-se, seus olhos quase podiam sentir a textura do que ainda não era. Do que estava para vir a ser. A mão esquerda, enfim, tocou no broto que lutava para existir. Ela entrou em êxtase. Ela sentia a vida no simples toque dos dedos. Sentia a necessidade de tocar não só com as mãos, mas com os lábios. Sentia a grande vontade de comer aquilo que em breve desabrocharia. Ela queria devorá-la, mastigá-la, engoli-la com todo o seu amor e fúria. Com os olhos ainda fechados e com delicadeza foi apertando o vegetal entre os dedos. Sentia cada pedaço se decompondo e caindo no chão seco. Por fim, num último ato, puxou o lixo misturado com a terra e cobriu a planta morta como se fosse um cadáver. Ela era uma assassina. Levantou-se, o sol ainda alto, caminhou devagar de volta para casa. Estava leve e livre. Uma grande alegria tomou conta do seu ser. Ela tinha matado pela primeira vez.





Tania Barros  

sábado, 11 de agosto de 2012

Ela,

Ela acordou cedo como todos os dias e foi trabalhar. A manhã passou como se o tempo estivesse suspenso. Na mente aquela vontade de fugir dali, de sair correndo sem rumo ou de gritar, gritar tão alto que seria ouvida. O que gritaria? Não importa. O grito é que era urgente. O grito seria a sua manifestação de desespero, de contrariedade. O grito, talvez, a libertaria. Não era a liberdade dos compromissos corriqueiros que ela desejava. Ela queria mais. Ela ardia por libertar-se de si mesma. Enfim, acabara as horas do disfarce e enfim voltava para casa. Ansiava por abrir a porta e encontrar um espaço em que poderia ao menos tentar tirar as máscaras e tentar ser ela própria. Mas quem era ela? Quem era aquela mulher que se olhava no espelho todos os dias e não se reconhecia? Sentia novamente aquela sensação de não pertencer ao mundo. Ahhhh, ela queria tanto pertencer! Ela queria tanto parar de pensar e ver as coisas simples com alegria. No entanto, todo o seu ser estava tomado de uma profunda tristeza, de um cansaço inominável. Era cansativo insistir. Era dolorido viver e apesar disso, ela vivia. Ela vivia. Ela insistia.  A casa pedia uma arrumação, mas o que ela desejava era organizar-se por dentro. Tomou um banho quente, deixando a água escorrer pelo rosto com força e pelo corpo com delicadeza. Ela apreciava o desequilíbrio, as contrariedades, os opostos... Depois, colocou o velho pijama e andou pela casa como se a desconhecia. Não tinha fome. Não de alimentos. Sua fome era de vida.. Ela desejava, desejava... Tinha um vulcão dentro de si. Como acalmá-lo? Como não fazer com que transborde sem nem um aviso, assim... de repente? Tinha conseguido até agora. Ou tinha sempre fingido? Fingir tornou-se sua melhor virtude e seu melhor disfarce. Até quando? Tudo começava a pesar. Carregava o peso de ser. Mas o que era? Enfim, tomou a decisão. Foi até o quarto, pegou os comprimidos e logo sentiu-se anestesiada. Iria dormir por horas e os pensamentos seriam silenciados. Seu corpo se acalmaria, o coração pararia de bater acelerado e a dor seria por horas esquecida. Tudo recomeçaria, ao abrir os olhos. Porém, agora, eles estavam fechados para o mundo.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O DESCONHECIDO


Saí de casa sem um destino determinado. Resolvi caminhar pelas ruas, pois muita coisa deveria ter mudado durante meu afastamento involuntário. Estava curiosa e apreensiva. Saberia eu lidar com a nova realidade? Saberia esquecer o que passei e recomeçar? Não havia mais certezas... Se o instinto de sobrevivência sempre prevalece, então nada mais me restava senão aceitar a minha vida e seguir adiante aos tropeços. O tratamento acabara e eu fora considerada capaz de retomar a antiga existência fútil e cada vez mais pesada. Eu era considerada normal. Na minha cabeça as perguntas de sempre iam e viam. No entanto, eu tinha aprendido a fingir e sorria, sorria, sorria... 
Resignada, eu conseguira minha liberdade fora daquela prisão que já não suportava. Novos caminhos precisavam ser trilhados e eu estava disposta a recomeçar. Por que não um passeio solitário?
         Caminhei a esmo pelas ruas que me eram completamente estranhas, os transeuntes pareciam feitos de bruma, de algum material inerte. Apenas eu me via! Parei um instante para contemplar o que antes me era tão conhecido e que agora fazia parte de algo que não sei se era real. Terá sido apenas sonho?
       Andei mais depressa como se fugisse de algo... Como se fosse possível deter meus pensamentos tão confusos. Quase corro...
        De repente, alguém passa por mim e eu descubro que posso ser percebida. Nós dois paramos e nossos olhos se encontraram. Durante longo tempo eu tentara sair dali, mas seus olhos me fitavam com um ardor e uma profundidade jamais sentida. Aquele homem mal vestido, com cabelos desgrenhados, dentes amarelados e mau cheiro conseguia penetrar no mais íntimo do meu ser. Ele me atingia como um soco no estômago. Ele me observava como quem analisa um ser inanimado. Era isto que eu era? Eu me sentia mesmo um ser abstrato. Ele conseguia captar minha alma e eu tinha medo.
        Sentia medo de quê? Não sabia. Mas meu coração pulsava cada vez mais forte e meu corpo permanecia ali, inerte, como se já não pudesse me obedecer. Palavras não foram ditas, não precisava. Nós nos entendíamos pelo olhar, que cada vez se tornava mais perturbador... Eu queria sair dali, não suportava mais aqueles olhos... Aqueles olhos me aprisionavam...
        Eu estava estática, nenhum movimento me era permitido, aqueles olhos... Não conseguia parar de olhá-los, não desviava meu olhar  por nenhum segundo sequer daquele homem. Era como se nós dois nos completássemos. Como se o que vivi pertencia de alguma forma a ele também.
          De repente, vozes me chamam, olho para trás mas não vejo sinal de qualquer pessoa. Volto rapidamente meu olhar para o desconhecido, mas ele já não se encontrava lá. Desaparecera em segundos e me vi novamente só. Olhei para todos os lados na esperança de revê-lo, mas foi em vão.
         Resolvi voltar, a caminhada já fora suficiente por aquele dia. Havia recomendações para eu não me exceder. Cheguei em casa depressa, abri a porta e entrei no meu quarto, meu refúgio particular.  A imagem daquele homem não saía da minha cabeça...
        Ao tirar a roupa, senti um calafrio percorrer meu corpo, como se estivesse sendo observada naquele exato momento. Fui até o espelho, vi um reflexo que me fez estremecer de horror...
        Aproximei-me e lá estava ele, olhando novamente para mim. Fitava-me fixamente como se pudesse enfim preencher o meu vazio. Percebi naquele instante que meu destino estava traçado e que jamais eu conseguiria me libertar daqueles olhos inquisidores porque eles me pertenciam.
Tania Barros