sábado, 25 de agosto de 2012

Persona


Ela passara o dia com febre e dor de cabeça. Ficou no quarto com as janelas trancadas sem que um raio de luz penetrasse naquele ambiente. Tudo estava sombrio e triste. Dentro de si só aquela sensação de impotência diante da vida. Só enxergava impossibilidades. Aproveitara o tempo para ler, mas os pensamentos fugitivos teimavam em surgiu e os parágrafos eram lidos e relidos sem nenhuma compreensão. Tentou ver um filme, mas nada a agradava. Mexendo no armário, encontrou uma cópia antiga de “Persona” e lembrou que ainda não tinha visto esse famoso filme de Bergman. Toda a casa ficou na escuridão, agora. A televisão foi ligada e o único som era do inebriante drama. Logo entendera a atriz que se cala, logo se identificou com a capacidade de calar quando todos gritam, logo compreendeu que ela também era uma personagem. Enquanto o filme rodava, seus olhos permaneciam fixos na tela e não conseguia ao menos fazer um movimento. Tudo aquilo era tão, tão... Tão seu. Era melhor calar que fingir? Encontraria uma Alma que pudesse salvá-la? Só conseguia fixar-se ora em uma personagem ora em outra, até as duas se confundirem numa mesma personalidade. Ela já sabia que dentro de si habitavam mais de um ser. Seria esse o eterno tormento do homem? Quem sou eu? Em qual momento estou sendo eu? Tantas vezes fizera essas mesmas perguntas. Tantas vezes chegara à mesma conclusão. Essa era a grande pergunta sem resposta. O filme acabara e ela continuava ansiosa. Pelo que tanto ansiava? Que desejo era esse que não se nominava? Levantou-se da cama, trocou rapidamente de roupa, lavou o rosto. Olhou-se demoradamente no espelho... Quem era esse ser que relutava tanto em existir? Quem era ela, afinal? Queria poder conter os pensamentos e fugir. Fugir pra onde? De que estava ela fugindo? Sempre fugindo... Colocou um sapato e saiu. Ao colocar os pés para fora da casa era como se o mundo se abrisse todo para engoli-la ferozmente. A angústia continuava e seus passos começaram a ser mais e mais rápidos. Sem rumo, quase corria. Evitava pensar. Era preciso não pensar e ir. Somente ir. Já estava muito longe de casa, os prédios foram ficando para a trás. Ela tinha se afastado de quase tudo. Chagava agora num lugar inóspito e sentia medo. Não poderia ter se perdido. Pedida. Sempre fora uma perdida, concluiu. Olhava para os lados e não via ninguém. De novo, sozinha. Solitária como sempre fora. O sol começava a arder e sua cabeça latejava. Procurou um local para sentar-se e não encontrou nada que a agradasse. Sentou-se ali mesmo e sentiu que a terra estava quente. Procurou afastar alguns pedaços de madeira e lixo que estavam jogados e sem querer sua mão tocou em algo inesperado. Olhou. Era uma pequena plantinha que surgia. Em meio à sujeira, um ser estava nascendo. Folhas pequeninas e verdes comaçavam a brotar. Ela aproximou-se, seus olhos quase podiam sentir a textura do que ainda não era. Do que estava para vir a ser. A mão esquerda, enfim, tocou no broto que lutava para existir. Ela entrou em êxtase. Ela sentia a vida no simples toque dos dedos. Sentia a necessidade de tocar não só com as mãos, mas com os lábios. Sentia a grande vontade de comer aquilo que em breve desabrocharia. Ela queria devorá-la, mastigá-la, engoli-la com todo o seu amor e fúria. Com os olhos ainda fechados e com delicadeza foi apertando o vegetal entre os dedos. Sentia cada pedaço se decompondo e caindo no chão seco. Por fim, num último ato, puxou o lixo misturado com a terra e cobriu a planta morta como se fosse um cadáver. Ela era uma assassina. Levantou-se, o sol ainda alto, caminhou devagar de volta para casa. Estava leve e livre. Uma grande alegria tomou conta do seu ser. Ela tinha matado pela primeira vez.





Tania Barros  

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