domingo, 15 de julho de 2012

MÁRIO


Há dias eu não levantava da cama. Ali, naquele quarto eu apenas pensava, pois nem mexer meu corpo eu podia. Havia necroses por todo lugar... O tempo só me causara feridas que não cicatrizavam... E eu sabia que mais nada poderia ser feito embora recebesse a todo momento aquelas "doces" mensagens de consolação que mais me irritavam que alegravam. O que pensavam? Que eu não enxergava meu próprio corpo se desintegrando aos poucos? Como manter a esperança quando o seu cheiro é insuportável até para você mesmo? Já não ouso olhar-me no espelho... Me ver é como enxergar um fantasma repugnante...
Como eu chegara até aqui? Por que ainda estava vivo? Por quê? Sentia a  cada dia que as pessoas se aproximavam de mim cada vez menos, mas eu não permitia que as janelas fossem abertas. Elas deviam permanecer fechadas. Hermeticamente fechadas... Eu queria sentir a minha própria morte. Queria ver a decomposição lenta do meu próprio ser. Não sabia exatamente os motivos, mas eu deveria passar por isso como um calvário. Eu não deveria questionar... Tinha chegado a minha vez de aceitar sem perguntas.
      Não permiti mais que me alimentassem, queria acelerar o processo. As pessoas me olhavam assustadas, mas com um agradecimento no olhar. Aquele quarto pertencia somente a mim. O cheiro fétido estava impregnado em tudo, principalmente nos lençóis que recebiam as excreções de minha pele quase podre. Eram lavados diariamente, mas logo resolvi que não deveriam ser mais tirados dali... Tudo deveria acabar logo e eu deveria sofrer profundamente a dor que me aguardava. Essa dor era só minha ... E necessária.
Minhas refeições eram colocadas em cima da mesa todos os dias e ali ficavam. Eu não sentia mais o sabor. Há o sabor! Nem o sabor da vida eu soubera aproveitar, se é que existe como pregam as pessoas felizes... Eu sempre preferira o lado oposto da alegria... Eu escolhera a solidão como companheira e não me arrependia... Nem na hora da minha morte eu iria me arrepender!
Todos os meus amigos desapareceram. Não senti falta, pois seus olhos piedosos me deixavam muito aflito e ansioso. Sozinho eu sentia minhas carnes se soltando do corpo e a morte não chegava. Como ansiava a sua presença! Como a desejava! Os lençóis já estavam insuportáveis e terrivelmente sujos, assim como eu me sentia. Os remédios acalmavam um pouco a minha dor, apenas a dor física. A pior era que eu sentira sempre dentro de mim e pra essa eu sabia que não existiam mais medidas paliativas.
          Cansado de esperar e num ato de desespero, tirei minhas ataduras e encarei minhas feridas de frente. Vi o sangue jorrar, as inflamações amareladas finalmente saíam de dentro da minha carne e senti o cheiro extremamente desagradável de mim mesmo... De um morto vivo. Sem querer comecei a esbravejar e chamar pela morte: venha logo, não suporto mais. O que mais quer de mim?
           Um vulto apareceu e eu o reconheci logo no início. Aproximou-se da cama, mas não me tocou. Olhou-me com pena e lágrimas nos olhos. Exclamei: - Vá embora, não quero você aqui. Veio assistir minha desgraça? Ela é só minha e eu desejo ficar só. Saia, Mário.
No entanto, ele ali permaneceu. Seu olhar terno me incomodava. Nem uma palavra saiu da sua boca, mas a sua presença me deixava agitado. Toda aquela perfeição me fazia ver no que eu havia me transformado e eu não queria mais ver nada... O que vira já me bastava. Tentava me mexer, mas não comandava mais aqueles pedaços de corpo que insistiam em manter-se unidos...
      Enfim, meus olhos foram se fechando e eu percebi que uma mão me tocava  levemente. Senti paz naquele momento. Foi o único instante de paz na minha vida inteira. Não vi se Mário estava ali ou se tinha ido embora. Talvez quisesse presenciar a última gota de agonia de um moribundo ou tivesse, de verdade, pena de mim. Eu não acreditava muito na segundo hipótese, mas parecia ser a mais conveniente.  Há tempos eu tinha aprendido o valor da conveniência e a rejeitar qualquer tipo de convicção. De repente, meus pensamentos foram parando devagar e senti meu corpo amortecendo...
Finalmente... Ela chegara. Eu estava morto e eu agradeci.
         As horas foram passando e na casa quase não se ouvia ruído algum. Ninguém queria perturbar o pobre doente. Não esqueciam de levar ao quarto o alimento do dia, mesmo que essa não era consumida. A velha tia Antônia, sempre com o terço na mão, nunca deixava de colocar as refeições sobre a mesa e de fazer orações intermináveis pedindo a cura do convalescente. Em vão, ela rezava.
Nesse dia, não esperava ver o que viu. Assustou-se ao olhar o rosto: não havia mais feridas, estavam cicatrizadas. O corpo... Esse não mudara... era apenas ossos que seguravam um cadáver. Não controlou o choro e por minutos abraçou o que restava do cadáver. Quando a lamentação acabara, levemente tapou o corpo com o cobertor e foi dar a notícia aos demais. Entrou na sala ainda lacrimejando... Falou mansamente:
- Mário acabou de morrer. Finalmente vai descansar em paz!

Tania Barros

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