quinta-feira, 19 de julho de 2012

O DESCONHECIDO


Saí de casa sem um destino determinado. Resolvi caminhar pelas ruas, pois muita coisa deveria ter mudado durante meu afastamento involuntário. Estava curiosa e apreensiva. Saberia eu lidar com a nova realidade? Saberia esquecer o que passei e recomeçar? Não havia mais certezas... Se o instinto de sobrevivência sempre prevalece, então nada mais me restava senão aceitar a minha vida e seguir adiante aos tropeços. O tratamento acabara e eu fora considerada capaz de retomar a antiga existência fútil e cada vez mais pesada. Eu era considerada normal. Na minha cabeça as perguntas de sempre iam e viam. No entanto, eu tinha aprendido a fingir e sorria, sorria, sorria... 
Resignada, eu conseguira minha liberdade fora daquela prisão que já não suportava. Novos caminhos precisavam ser trilhados e eu estava disposta a recomeçar. Por que não um passeio solitário?
         Caminhei a esmo pelas ruas que me eram completamente estranhas, os transeuntes pareciam feitos de bruma, de algum material inerte. Apenas eu me via! Parei um instante para contemplar o que antes me era tão conhecido e que agora fazia parte de algo que não sei se era real. Terá sido apenas sonho?
       Andei mais depressa como se fugisse de algo... Como se fosse possível deter meus pensamentos tão confusos. Quase corro...
        De repente, alguém passa por mim e eu descubro que posso ser percebida. Nós dois paramos e nossos olhos se encontraram. Durante longo tempo eu tentara sair dali, mas seus olhos me fitavam com um ardor e uma profundidade jamais sentida. Aquele homem mal vestido, com cabelos desgrenhados, dentes amarelados e mau cheiro conseguia penetrar no mais íntimo do meu ser. Ele me atingia como um soco no estômago. Ele me observava como quem analisa um ser inanimado. Era isto que eu era? Eu me sentia mesmo um ser abstrato. Ele conseguia captar minha alma e eu tinha medo.
        Sentia medo de quê? Não sabia. Mas meu coração pulsava cada vez mais forte e meu corpo permanecia ali, inerte, como se já não pudesse me obedecer. Palavras não foram ditas, não precisava. Nós nos entendíamos pelo olhar, que cada vez se tornava mais perturbador... Eu queria sair dali, não suportava mais aqueles olhos... Aqueles olhos me aprisionavam...
        Eu estava estática, nenhum movimento me era permitido, aqueles olhos... Não conseguia parar de olhá-los, não desviava meu olhar  por nenhum segundo sequer daquele homem. Era como se nós dois nos completássemos. Como se o que vivi pertencia de alguma forma a ele também.
          De repente, vozes me chamam, olho para trás mas não vejo sinal de qualquer pessoa. Volto rapidamente meu olhar para o desconhecido, mas ele já não se encontrava lá. Desaparecera em segundos e me vi novamente só. Olhei para todos os lados na esperança de revê-lo, mas foi em vão.
         Resolvi voltar, a caminhada já fora suficiente por aquele dia. Havia recomendações para eu não me exceder. Cheguei em casa depressa, abri a porta e entrei no meu quarto, meu refúgio particular.  A imagem daquele homem não saía da minha cabeça...
        Ao tirar a roupa, senti um calafrio percorrer meu corpo, como se estivesse sendo observada naquele exato momento. Fui até o espelho, vi um reflexo que me fez estremecer de horror...
        Aproximei-me e lá estava ele, olhando novamente para mim. Fitava-me fixamente como se pudesse enfim preencher o meu vazio. Percebi naquele instante que meu destino estava traçado e que jamais eu conseguiria me libertar daqueles olhos inquisidores porque eles me pertenciam.
Tania Barros


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Ela já não sabia mais o que esperar da vida. Tinha o que esperar de algo ou alguém? Ela sempre fora sozinha e perdida. Perdida dentro e dora de si. Não se cansava de perguntar. Não se cansava de achar respostas. Não se cansava de não encontrar algumas respostas. Era incansável na sua triste alegria de viver. Tudo girava em torno de uma busca de sentido. Um sentido de quê? Pra quê? Pra onde? Haveria um sentido ou era simplesmente deixar a respiração acontecer?  Viver, apenas.  Ainda não conseguia. Era preciso seguir adiante até a calmaria chegar. Se é que chegaria um dia. Tudo era turbulência dentro de si e ansiava pela tranquilidade dos normais por alguns instantes. Só por instantes. A normalidade a enojava. Era preciso deixar o caos dominar o corpo e a mente para então conhecer-se. Era preciso perder-se para encontrar-se. Era preciso deixar-se ser.

domingo, 15 de julho de 2012

MÁRIO


Há dias eu não levantava da cama. Ali, naquele quarto eu apenas pensava, pois nem mexer meu corpo eu podia. Havia necroses por todo lugar... O tempo só me causara feridas que não cicatrizavam... E eu sabia que mais nada poderia ser feito embora recebesse a todo momento aquelas "doces" mensagens de consolação que mais me irritavam que alegravam. O que pensavam? Que eu não enxergava meu próprio corpo se desintegrando aos poucos? Como manter a esperança quando o seu cheiro é insuportável até para você mesmo? Já não ouso olhar-me no espelho... Me ver é como enxergar um fantasma repugnante...
Como eu chegara até aqui? Por que ainda estava vivo? Por quê? Sentia a  cada dia que as pessoas se aproximavam de mim cada vez menos, mas eu não permitia que as janelas fossem abertas. Elas deviam permanecer fechadas. Hermeticamente fechadas... Eu queria sentir a minha própria morte. Queria ver a decomposição lenta do meu próprio ser. Não sabia exatamente os motivos, mas eu deveria passar por isso como um calvário. Eu não deveria questionar... Tinha chegado a minha vez de aceitar sem perguntas.
      Não permiti mais que me alimentassem, queria acelerar o processo. As pessoas me olhavam assustadas, mas com um agradecimento no olhar. Aquele quarto pertencia somente a mim. O cheiro fétido estava impregnado em tudo, principalmente nos lençóis que recebiam as excreções de minha pele quase podre. Eram lavados diariamente, mas logo resolvi que não deveriam ser mais tirados dali... Tudo deveria acabar logo e eu deveria sofrer profundamente a dor que me aguardava. Essa dor era só minha ... E necessária.
Minhas refeições eram colocadas em cima da mesa todos os dias e ali ficavam. Eu não sentia mais o sabor. Há o sabor! Nem o sabor da vida eu soubera aproveitar, se é que existe como pregam as pessoas felizes... Eu sempre preferira o lado oposto da alegria... Eu escolhera a solidão como companheira e não me arrependia... Nem na hora da minha morte eu iria me arrepender!
Todos os meus amigos desapareceram. Não senti falta, pois seus olhos piedosos me deixavam muito aflito e ansioso. Sozinho eu sentia minhas carnes se soltando do corpo e a morte não chegava. Como ansiava a sua presença! Como a desejava! Os lençóis já estavam insuportáveis e terrivelmente sujos, assim como eu me sentia. Os remédios acalmavam um pouco a minha dor, apenas a dor física. A pior era que eu sentira sempre dentro de mim e pra essa eu sabia que não existiam mais medidas paliativas.
          Cansado de esperar e num ato de desespero, tirei minhas ataduras e encarei minhas feridas de frente. Vi o sangue jorrar, as inflamações amareladas finalmente saíam de dentro da minha carne e senti o cheiro extremamente desagradável de mim mesmo... De um morto vivo. Sem querer comecei a esbravejar e chamar pela morte: venha logo, não suporto mais. O que mais quer de mim?
           Um vulto apareceu e eu o reconheci logo no início. Aproximou-se da cama, mas não me tocou. Olhou-me com pena e lágrimas nos olhos. Exclamei: - Vá embora, não quero você aqui. Veio assistir minha desgraça? Ela é só minha e eu desejo ficar só. Saia, Mário.
No entanto, ele ali permaneceu. Seu olhar terno me incomodava. Nem uma palavra saiu da sua boca, mas a sua presença me deixava agitado. Toda aquela perfeição me fazia ver no que eu havia me transformado e eu não queria mais ver nada... O que vira já me bastava. Tentava me mexer, mas não comandava mais aqueles pedaços de corpo que insistiam em manter-se unidos...
      Enfim, meus olhos foram se fechando e eu percebi que uma mão me tocava  levemente. Senti paz naquele momento. Foi o único instante de paz na minha vida inteira. Não vi se Mário estava ali ou se tinha ido embora. Talvez quisesse presenciar a última gota de agonia de um moribundo ou tivesse, de verdade, pena de mim. Eu não acreditava muito na segundo hipótese, mas parecia ser a mais conveniente.  Há tempos eu tinha aprendido o valor da conveniência e a rejeitar qualquer tipo de convicção. De repente, meus pensamentos foram parando devagar e senti meu corpo amortecendo...
Finalmente... Ela chegara. Eu estava morto e eu agradeci.
         As horas foram passando e na casa quase não se ouvia ruído algum. Ninguém queria perturbar o pobre doente. Não esqueciam de levar ao quarto o alimento do dia, mesmo que essa não era consumida. A velha tia Antônia, sempre com o terço na mão, nunca deixava de colocar as refeições sobre a mesa e de fazer orações intermináveis pedindo a cura do convalescente. Em vão, ela rezava.
Nesse dia, não esperava ver o que viu. Assustou-se ao olhar o rosto: não havia mais feridas, estavam cicatrizadas. O corpo... Esse não mudara... era apenas ossos que seguravam um cadáver. Não controlou o choro e por minutos abraçou o que restava do cadáver. Quando a lamentação acabara, levemente tapou o corpo com o cobertor e foi dar a notícia aos demais. Entrou na sala ainda lacrimejando... Falou mansamente:
- Mário acabou de morrer. Finalmente vai descansar em paz!

Tania Barros

sábado, 14 de julho de 2012